Cooperativa de reciclagem transforma vidas na periferia de Brasília
via Catraca Livre
Há trinta anos se formavam aos arredores de Brasília os primeiros barracos do que viria a ser conhecido, nos dias atuais, como a Cidade Estrutural. Segunda maior favela da região, com quase 40 mil habitantes, sua origem está diretamente ligada à chegada de imigrantes que buscavam no aterro sanitário do Distrito Federal uma fonte de renda. Neste árido cenário, em meio à falta de recursos básicos como saneamento, edução, emprego, saúde e segurança, surge a história da ex-catadora de lixo Marli Santos Souza. Hoje, a única marceneira mulher da Cooperativa Sonho de Liberdade.
Criado em 2005, o empreendimento social surgiu quando o ex-presidiário, Fernando de Figueiredo, ainda pagava suas dívidas com a justiça no Complexo da Papuda, em Brasília, onde respondia por crimes como assaltos e roubo de carros. Os seis anos que privaram sua liberdade foram suficientes para esquecer o passado e, junto com alguns amigos, tramar um novo plano para suas vidas além das grades.
Sonho de Liberdade
O primeiro passo foi dado quando Fernando e outros detentos aprenderam a trabalhar com a confecção de bolas de futebol e redes esportivas, por meio de um programa de capacitação realizado na cadeia. Já profissionalizado, aproveitava as horas livres do regime semi-aberto para sair às ruas e vender os produtos, que àquela altura, já se revela uma próspera alternativa para o futuro. Contudo, a forte e desproporcional concorrência com mercados internacionais de China e Afeganistão obrigaram o ex-detento a se reinventar. E não precisou muito.
De volta à Estrutural, Fernando tinha uma nova fonte de lucro para o seu negócio: a reutilização de madeira descartada no lixão. E ao unir solidariedade e vocação socioambiental, criou a Cooperativa Sonho de Liberdade, idealizada com a proposta de reinserir ex-presidiários e detentos em regime semi-aberto ao mercado de trabalho. “Hoje estamos mudando história. Porque hoje se você for buscar emprego e tiver uma ficha suja, ninguém te dá oportunidade. E aqui na cooperativa é diferente. Muitas pessoas me pedem uma chance, que estão estudando, fazendo faculdade. Eu respondo ‘não leva a mal, não’ mas nós damos oportunidade pra quem está saindo do sistema penitenciário, esperando o juiz bater o martelo pra mudar sua história”.
Atualmente, a Cooperativa é formada por 100 pessoas, entre presos, ex-presidiários, além de “alcoólatras, mendigos, andarilhos, prostitutas, lésbicas, homossexual, sem discriminação, porque aqui não existe preconceito com ninguém. Aqui o desafio é ajudar o sujeito que todo mundo desprezou, aqueles que dizem que não tem solução. Mas tem sim”.
Marli, a Guerreira
Apesar de nunca ter respondido a nenhum dos pré-requisitos destacados por Fernando, a única mulher marceneira da cooperativa é a baiana Marli Santos Souza, chamada por ele de “Guerreira”, que chegou à cooperativa há mais ou menos três anos desde que deixou o Lixão da Estrutural.
Com 44 anos, Marli traçou o mesmo caminho dos milhões de retirantes que deixaram sua terra natal em busca de uma nova vida. No lixão, onde trabalhou por nove anos, Marli viveu a difícil experiência de trabalhar numa área de 124 hectares, que recebe diariamente 2,7 toneladas de resíduos e é considerado o maior aterro sanitário da América Latina. “Quando trabalhava no lixão, tive a oportunidade de ajudar uma pessoa que mais tarde conheceu a cooperativa. E em retribuição, prometeu me tirar daquele sofrimento, daquela vida de riscos, sujeira, miséria e bactérias. Aí conseguiu um lugar pra mim, ajudando a mudar minha vida”.
Hoje Marli ressalta a importância da cooperativa em sua vida. Mesmo sem nunca ter estado atrás das grades, a marceneira deixou para trás as lembranças dos dias em que seu sustento se garantia por meio do lixo descartado. “Mudou muita coisa, financeiramente, a construir as minhas coisas. Ter possibilidade de ter um perfume, comer bem, uma chance de ter uma nova vida”.
Divino, o Mac Gyver
José Divino Vieira largou a família, trabalho e os anos de faculdade de Direito por conta do vício com o crack. Hoje aos 45 anos, 6 de rua, o confeccionador de móveis infantis ganhou o apelido do famoso personagem dos filmes de ação por sua habilidade em transformar tudo o que encontra no lixo. Do passado, apenas as lembranças de um tempo que serviu de lição para o presente, deixando para trás um passado marcado por assaltos a supermercados e outros pequenos delitos motivos pela dependência química. “Só sabia roubar pra adquirir o crack. Fiquei quase dois anos roubando tudo quanto é tipo de comércio, pra vender os produtos e depois comprar a droga. Mas hoje eu posso agradecer a Deus por estar livre desta droga tão forte e destruidora”.
Sua sorte mudaria justamente na 15ª vez que assaltava um mesmo mercado em Guará, região administrativa do Distrito Federal. Detido pelos funcionários, Divino foi levado a uma sala onde achou que só tinha duas saídas:morte ou a cadeia. Inesperadamente, o gerente do supermercado o levou para casa, onde tomou um banho depois de 30 dias e ganhou novas roupas. Lá ouviu pela primeira vez sobre a Cooperativa a Sonho de Liberdade. “Ele me perguntou o que eu sabia fazer e respondi que fazia um monte de coisa, sou marceneiro, sou carpinteiro, eletricista e tenho segundo ano de Direito. Hoje tô contando o que a cooperativa tem feito na minha vida e graças a Deus estou bem, muito bem estabilizado. Posso dizer que a minha maior riqueza, maior felicidade, eu estou tendo de volta, que é ter minha família de volta”
Reciclando vidas
Dividido entre a seleção de madeiras de reciclagem e construção, por dia, são recebidas mais de 100 toneladas de madeira por dia, que serão aproveitadas para construção de móveis ou como combustível para indústria.”O maior volume de trabalho é o da construção civil. Nós pegamos o material que vem das obras, ele chega aqui, passa por uma separação. A madeira passa por um grupo que arranca prego, um que separa e outro que serra a madeira. E depois, o material que sobra e, não serve mais nem pra marcenaria, vira combustível para a indústria”, explica Fernando, que hoje fatura 100 mil por mês – divido entre os cooperados, de acordo com a produção de cada participante.
Dez anos depois, a Sonho de Liberdade cumpre um papel não desempenhado pelo estado e consegue recuperar o caminho de centenas de ex-presidiários que buscavam uma resposta para a vida longe do crime. De todos os participantes do projeto, apenas 2% voltaram a cometer algum tipo de delito. “É com muito orgulho que recebo todos para falar um pouco desse projeto que sempre estive à frente. Porque ninguém aqui pode imaginar o que passamos. De onde vimos, poucos escapam. O que parece lixo para muitos é de onde a gente tira o nosso sustento, porque o homem parado, sem trabalho, não tem dignidade”.